Geralmente
acontecia nos dias de segunda-feira e estendia-se conforme a paciência dos que
moravam conosco.
Algumas vezes eu a encontrava encostada na
mesa do bar próximo a nossa casa, porém na maioria das vezes eu apenas ouvia
sua voz ecoando do portão. Cabelo bem preto com alguns fios brancos, pixaim,
bem alto. Uma boca faltando alguns dentes e uma roupa com cheiro de cachaça
branca.
- Vem fia, abre o portão pra mãe que eu tô
com o estrombo doendo.
Eu corria para o portão. Eu e meu pacote de
bolacha maisena acompanhado com o saco de bate-gute, que o vizinho tinha me
oferecido naquela manhã. Naqueles momentos eu sempre sentia um misto de
sentimentos. Ficava feliz por ela ter conseguido voltar pra casa e pedia à Deus
para que ela estivesse “boa” – era assim que eu a considerava quando estava
sóbria, para mim ela se resumia em estar “boa” ou “bêba”- mas logo ficava
triste ao sentir o cheiro da cachaça e voltava a me sentir desprotegida.
Durante o resto do dia ela dormia em
intervalos que eram medidos pelas dores de seu estômago. Eu ficava atenta aos
seus chamados, em frente a tv, choramingando baixinho para não acorda-la.
Até hoje não consigo entender como
administrava a raiva, a pena e o amor ao mesmo tempo. Todos vinham na mesma
hora e eu, criança, sentia todos com sinceridade. O amor por aquela mulher de
pele negra sempre vencia meu desapontamento, raiva e indignação.
Lembro perfeitamente de um episódio que deve
ter ocorrido entre os anos de 98 ou 97, talvez até 96. Era carnaval e toda a família
iria viajar para Caponga. Eu já sonhava com essa viagem desde o começo da
daquele ano, quando alguns primos tinham me contado sobre os boatos da viagem e
de como era divertido o carnaval na praia. Seria minha primeira viagem de
carnaval. Todos da casa viajaram na sexta pela manhã, eu e ela iríamos no
sábado a tarde com outros familiares. Antes de ir dormir na sexta a noite, eu
fui até a sua rede e falei: mãe, por favor fica boa amanhã porque a tia vai
passar aqui pra gente viajar. Ela respondeu com um sorriso: Num se preocupa não
nêga preta que a mãe não vai beber nem amanhã, nem nunca mais. Eu já tinha
escutado essa promessa várias vezes e como em todas as outras vezes, eu
acreditei. Dormi e sonhei com a praia.
Acordei no sábado e não a encontrei, minha
barriga esfriou, senti a mesma sensação de medo que me acometia sempre que essa
cena repetia-se.
Chorei no banheiro mesmo sem ter ninguém em
casa – chorar no banheiro era uma tática que eu usava para meus irmãos não
perceberem que eu estava a chorar, pois quando percebiam começavam a gritar com
a minha senhora de pele negra o que me deixava apenas mais triste – chorei e
fiquei a esperá-la. Chegou como na maioria das vezes, reclamando da dor no
estômago. Eu a alimentei e tentei banha-la, o que foi em vão. A imagem do meu sonho
na praia não saia da minha cabeça.
Minha tia chegou. E quando encontrou minha
senhora de pele negra quase que deitada sobre a mesa, começou a esbravejar.
Lembro que meu primo me pegou nos braços e me levou para o banheiro, de lá eu
escutava o choro da minha mãe misturado com o barulho da água do chuveiro e os
gritos de minha tia. Meu primo segurava algumas mudas de roupas e me
perguntava: Qual você quer vestir pra ir pra Caponga? Eu escolhi a roupa,
terminei o banho e perguntei para ele baixinho: ela vai com a gente também né?
Ele apenas respondeu: Minha mãe que decide. Corri para o quarto, me vesti e
enquanto isso minha tia brigava com minha mãe na sala. Peguei minha mochila,
minha bola de 1 real e corri para a sala, então presenciei uma cena que até
hoje não esqueci: Minha tia estava enfurecida pois minha senhora de pele negra
estava tão ébria, que não conseguia responder as suas perguntas, apenas
choramingava. Minha tia levantava sua cabeça pelos cabelos e com a outra mão dava-lhe
na cara.
Soltei minha bola e gritei: para tia! vai
matar minha mãe. Ela respondeu: Num morre não, vaso ruim não quebra. Vamos
embora que não vou te deixar aqui com essa bêbada vagabunda e me tomou nos
braços. Por um momento eu quis ir, apenas por um momento, chegando no portão
comecei a chorar e gritar: leva minha mãe tia, leva!
Foi então que minha senhora da pele negra
reuniu forças e gritou: deixe minha menina aqui, é minha fia, eu que pari, num
leve não. Eu continuava a gritar e os vizinhos saíram na rua para saber o que
estava acontecendo. Foi então que no meio de tanto grito e choro alguém disse:
Pergunta pra menina se ela quer ficar!
Minha tia colocou-me no chão, olhou nos meus
olhos e disse: Quer ir com a tia pra praia, comer peixe e encontrar tuas primas
ou ficar aqui com essa tua mãe beba? Eu respondi: quero ficar com a minha mãe.
Os vizinhos então se prontificaram a ficar
de olho em mim. Aquele
não foi meu primeiro carnaval na praia.
Hoje ironicamente escrevo estas lembranças com
uma garrafa de vinho pela metade ao meu lado e um copo cheio que está sendo
levado à minha boca nesse momento.