domingo, julho 8

Minha senhora da pele negra.




  Geralmente acontecia nos dias de segunda-feira e estendia-se conforme a paciência dos que moravam conosco.
   Algumas vezes eu a encontrava encostada na mesa do bar próximo a nossa casa, porém na maioria das vezes eu apenas ouvia sua voz ecoando do portão. Cabelo bem preto com alguns fios brancos, pixaim, bem alto. Uma boca faltando alguns dentes e uma roupa com cheiro de cachaça branca.
   - Vem fia, abre o portão pra mãe que eu tô com o estrombo doendo.
   Eu corria para o portão. Eu e meu pacote de bolacha maisena acompanhado com o saco de bate-gute, que o vizinho tinha me oferecido naquela manhã. Naqueles momentos eu sempre sentia um misto de sentimentos. Ficava feliz por ela ter conseguido voltar pra casa e pedia à Deus para que ela estivesse “boa” – era assim que eu a considerava quando estava sóbria, para mim ela se resumia em estar “boa” ou “bêba”- mas logo ficava triste ao sentir o cheiro da cachaça e voltava a me sentir desprotegida.
   Durante o resto do dia ela dormia em intervalos que eram medidos pelas dores de seu estômago. Eu ficava atenta aos seus chamados, em frente a tv, choramingando baixinho para não acorda-la.
   Até hoje não consigo entender como administrava a raiva, a pena e o amor ao mesmo tempo. Todos vinham na mesma hora e eu, criança, sentia todos com sinceridade. O amor por aquela mulher de pele negra sempre vencia meu desapontamento, raiva e indignação.
   Lembro perfeitamente de um episódio que deve ter ocorrido entre os anos de 98 ou 97, talvez até 96. Era carnaval e toda a família iria viajar para Caponga. Eu já sonhava com essa viagem desde o começo da daquele ano, quando alguns primos tinham me contado sobre os boatos da viagem e de como era divertido o carnaval na praia. Seria minha primeira viagem de carnaval. Todos da casa viajaram na sexta pela manhã, eu e ela iríamos no sábado a tarde com outros familiares. Antes de ir dormir na sexta a noite, eu fui até a sua rede e falei: mãe, por favor fica boa amanhã porque a tia vai passar aqui pra gente viajar. Ela respondeu com um sorriso: Num se preocupa não nêga preta que a mãe não vai beber nem amanhã, nem nunca mais. Eu já tinha escutado essa promessa várias vezes e como em todas as outras vezes, eu acreditei. Dormi e sonhei com a praia.
   Acordei no sábado e não a encontrei, minha barriga esfriou, senti a mesma sensação de medo que me acometia sempre que essa cena repetia-se.
   Chorei no banheiro mesmo sem ter ninguém em casa – chorar no banheiro era uma tática que eu usava para meus irmãos não perceberem que eu estava a chorar, pois quando percebiam começavam a gritar com a minha senhora de pele negra o que me deixava apenas mais triste – chorei e fiquei a esperá-la. Chegou como na maioria das vezes, reclamando da dor no estômago. Eu a alimentei e tentei banha-la, o que foi em vão. A imagem do meu sonho na praia não saia da minha cabeça.
   Minha tia chegou. E quando encontrou minha senhora de pele negra quase que deitada sobre a mesa, começou a esbravejar. Lembro que meu primo me pegou nos braços e me levou para o banheiro, de lá eu escutava o choro da minha mãe misturado com o barulho da água do chuveiro e os gritos de minha tia. Meu primo segurava algumas mudas de roupas e me perguntava: Qual você quer vestir pra ir pra Caponga? Eu escolhi a roupa, terminei o banho e perguntei para ele baixinho: ela vai com a gente também né? Ele apenas respondeu: Minha mãe que decide. Corri para o quarto, me vesti e enquanto isso minha tia brigava com minha mãe na sala. Peguei minha mochila, minha bola de 1 real e corri para a sala, então presenciei uma cena que até hoje não esqueci: Minha tia estava enfurecida pois minha senhora de pele negra estava tão ébria, que não conseguia responder as suas perguntas, apenas choramingava. Minha tia levantava sua cabeça pelos cabelos e com a outra mão dava-lhe na cara.
   Soltei minha bola e gritei: para tia! vai matar minha mãe. Ela respondeu: Num morre não, vaso ruim não quebra. Vamos embora que não vou te deixar aqui com essa bêbada vagabunda e me tomou nos braços. Por um momento eu quis ir, apenas por um momento, chegando no portão comecei a chorar e gritar: leva minha mãe tia, leva!
   Foi então que minha senhora da pele negra reuniu forças e gritou: deixe minha menina aqui, é minha fia, eu que pari, num leve não. Eu continuava a gritar e os vizinhos saíram na rua para saber o que estava acontecendo. Foi então que no meio de tanto grito e choro alguém disse: Pergunta pra menina se ela quer ficar!
   Minha tia colocou-me no chão, olhou nos meus olhos e disse: Quer ir com a tia pra praia, comer peixe e encontrar tuas primas ou ficar aqui com essa tua mãe beba? Eu respondi: quero ficar com a minha mãe.
   Os vizinhos então se prontificaram a ficar de olho em mim. Aquele não foi meu primeiro carnaval na praia.
   Hoje ironicamente escrevo estas lembranças com uma garrafa de vinho pela metade ao meu lado e um copo cheio que está sendo levado à minha boca nesse momento.

sexta-feira, junho 22

Anônimo.


sem nome
sem dor
com braços 
alcança o fundo
revira o mar inquieto 
cor do arco íris


toques 
leves 
certeiros
são ponteiros 
do meu fim

segunda-feira, maio 21

Da angústia diária. II

Tenho travado batalhas constantes.

Emergem da solidão os meus inimigos. Gigantes.

Não me suporto sozinha, perco-me ao longo dos dias

Carrego um peso no peito que não alivia

A música que escuto não afasta essa agonia

Rasgo-me em mim pedaços, jogo-me ao vento

Pairo no ar carregado de lembranças

Misturo-me na poeira com a esperança

De apenas não ser.

segunda-feira, abril 30

Da angústia diária.

o poço da angústia parece nunca secar
volta e meia as lágrimas caem sem avisar
eu carrego as lembranças
e as marcas na pele
você muitas vezes não percebe

na solidão, onde as vozes se calam
o vazio se comporta como rei
na solidão, onde as vozes se calam
construo o meu abrigo
e traço o caminho
que seguirei.

quarta-feira, abril 25

Indigente.

o confuso persegue meus pensamentos furtivos
derrubando as certezas inventadas por outros

nós nomeamos as relações
tão carregadas de intensos significados
e abdicamos o inominável
em troca da certeza compromissada

eu caminho descalça, sem nome nem placas
na estrada longa das sentimentações
sorrio, choro e grito
e sinto no corpo o arrepio de novas sensações

não quero nomes, quero olhares
não quero datas, prefiro as preliminares

seus conceitos, contratos e convenções
apenas atrasam a evolução das nossas relações

que seja livre o amor verdadeiro
que seja eterno o beijo primeiro
que seja real o aperto de maõs
que seja o abraço, sinônimo de união

terça-feira, agosto 30

Beija-Flor [2]

e pra me encontrar,
basta sair perambulando pelas ruas de fortaleza.
encontrará um pouco de mim em cada esquina escura,
em cada bar derrubado,
em cada praça esquecida pelos homens de bem,
em cada casa habitada por seres que seguem a regra de não seguir regra nenhuma.
sou beija-flor que além de amar as flores, também ama os espinhos.

segunda-feira, agosto 15

Turista de todas as estradas.

(foto no acostamento da estrada de Pacatuba-CE)

O sabor do vento de outros lares.
A verdade de outras cidades.
E a imensidão da estrada.

Tudo me encanta e seduz,
teu beijo me envolve e conduz.

Querer o infinito das estradas.
Almejar o fim do túnel do nada.
Continuar sendo aquele que nunca foi.

O mestre do irreconhecível.
O sofredor do passado.

Eu sou, eu sinto.
Eu sou você, suas vontades e angústias.
Sou toda a escuridão, da tua falta de coragem
de ganhar o mundo.

sábado, julho 9

Beija-Flor



"eu sou um pássaro que vivo avoando, vivo avoando sem nunca mais parar"

o beija-flor reapareceu hoje na minha janela

depois de tanto ter ficado ausente

seus olhos brilhavam como antes

meu coração batia mais forte do que nunca

eu lia um livro dignamente ateu

perdia-me nas letras do evangelho de saramago

um estalo, uma luz, um som

a visão do beija-flor

belo como nos meus sonhos

fez-se homem o pássaro

fez-se rubra a minha face

queria dele tudo aquilo

que um ser apaixonado pode querer

a voz soava como canção

os gestos eram delicados

típicos de sua espécie

também eram rápidos

vivia aquilo intensamente e no íntimo desejava

uma gaiola pra prender o pássaro junto a mim

a paixão traz sempre consigo

um pouco

dos sentimentos estúpidos

egoísmo, possessão...

eu queria prender o pássaro,

desejava a gaiola enquanto o admirava

talvez por desejar muito

não percebi o tempo passar

foi-se o meu beija-flor

visitar outras flores,

ficou o meu coração.

desejando a gaiola,

alimentando a paixão.

domingo, abril 17

a boa vida

- Charles Bukowski

uma casa com 7 ou 8 pessoas
vivendo ali
rachando o aluguel.
há um estéreo nunca utilizado
e um par de bongôs
nunca utilizado
e há panos cobrindo as
janelas
e você fuma
enquanto baratas vivas
escorregam sobre os botões de sua
camisa e despencam no
chão.

está escuro e alguém vai em
busca de comida. você come
e dorme. todos dormem ao mesmo
tempo: no chão, sobre as mesas,
sofás, camas, nas banheiras. há até
mesmo uma pessoa lá fora no mato.

então alguém acorda e
diz, "vamos lá, vamos fechar
um!"

alguns outros acordam.
"opa. é isso aí."

"beleza. vamos lá, alguém aí
fecha dois. vamos nos
chapar!"

"isso. vamos nos chapar!"

fumamos alguns baseados e depois
voltamos a dormir
trocando apenas de lugar
da banheira para o sofá, da mesa para
o tapete, da cama para o chão, e um novo
sujeito desaba no mato
lá fora (...)

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Mais um poema daquele que eu considero mestre! Retirado do livro "O amor é um cão dos diabos" Dá-lhe Bukowski.

sexta-feira, abril 8

É a noite.

O poeta sabe que a noite é louca

A noite é viva, bem mais que o dia

Á noite trabalham os poetas loucos

Perambulam os cachorros magros

E os lateiros alucinados


A noite para o poeta é um berço

Que não foi feito para dormir

Uma cama pra não deitar

Mais um gole para se beber

Um baseado para se fumar

Acompanhados de uma boa música

Para se ouvir e cantar


O poeta é homem, vida e trabalho

Ser poeta foi apenas obra do acaso

Da casa do lado de parede pintada

Que não desbotou.


É a tua luz que não se apagou e eu

Relembrando teus beijos tão sem amor

É o poeta que mesmo calado inspira

Pecado e poema aos olhos do leitor

É a escrita sem sentido, sem ouvinte

Ou crítico pra vir reclamar

É a minha vontade de não se calar,

Apenas amar.